terça-feira, 12 de maio de 2009

Bourse de Laurac

Mais uma viagem, mais um encontro de coleccionadores, mais uma aventura inefável.
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3500 quilómetros de ida e volta, duas noites de estrada sem dormir, quatro dias de sonho.
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A 5ème Bourse Glycophile Internationale de Laurac (pequena vila no centro-sul de França, perto do belíssimo rio Ardèche - sobre o qual já aqui escrevi) realizou-se na vila de Rosières, entre Aubenas e Joyeuse, no passado dia 2 de Maio. Não fosse o feriado do dia anterior e ter-nos-ia sido impossível estarmos presentes. Viva o dia do trabalhador! Viva o lazer! Viva a amizade!



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E foi com dois amigos coleccionadores dispostos a dividir despesas que partimos à meia-noite de um dia de trabalho desgastante para 18 horas de viagem e poucas paragens. Uma tirada tão sem fôlego como a frase anterior. Mas perfeitinha, cheia de histórias de coleccionismo, cafés fraquinhos, um almoço regadinho com vinho branco alentejano fresquinho (abençoada geleira!) e um milímetro a menos no rodado dos pneumáticos. Não há bela sem senão ou, como diriam os nossos amigos gauleses, pas de plaisir sans peine.
Chegámos a casa por volta das oito da tarde: uma magnífica mobile home no parque de campismo Beaume Giraud. A Madame Balazuc (proprietária do parque) e o Vincent Penel, organizadores do encontro, esperávam-nos, simpatiquíssimos. Acabámos a noite à volta da sua mesa, entre outros coleccionadores e familiares, depois de jantarmos na mobile home os restos de bacalhau frito, bolinhos de bacalhau e panados que trouxéramos de Portugal, acompanhados de um arrozinho de tomate solto - feito em esturgido de manteiga (o azeite ficara em casa)! Ofereceram-nos uma sobremesa-digestivo típica: ameixas maceradas em vinho tinto. Nada mau, para quem já só conseguia manter os olhos abertos com o esforço de comunicar em franglês.
Acordámos em beleza! Depois de um pequeno almoço reforçado, o paraíso: a Madame Balazuc colocou-nos à disposição uma dezena de caixas de pacotes de açúcar para que embolsássemos à vontade as nossas preferências. Uma hora de puro entretenimento para nós e de segundo sono para a mais-que-tudo, merecidíssimo pelo esforço de me acompanhar.
Passámos o resto do dia em passeio pelas Gorges d'Ardèche e em Balazuc, uma village de character. Aqui foi dado o pontapé de saída do encontro, com um apéritif dïnatoire no café Chez Paullete. Oportunidade para afiar a língua com o polimento de vários idiomas e para reencontrar amigos destas andanças. Na verdade, a abertura de hostilidades foi feita com um intragável (mas omnipresente) Ricard pastis, seguido de vinho rosé, Porto e Cognac. Uns salgadinhos de pouca substância serviram para começar a enganar a fome; seguiram-se uma fatias magrinhas de pizza (razoável), uma fatiazinha de pão branco com paté e uns pedacinhos de caillette, uma espécie de enchido da região, feito com vegetais, ervas, carne de porco e miúdos, e que obteve uma reprovação unânime. O gosto treina-se, é verdade, mas viemos sem tempo para isso. E tempo foi o que nos faltou para podermos compensar estas francesisses com um jantar à portuguesa, por isso acabámos a noite no McDonald's de Aubenas. Não fosse isso, o Romeu Lopes e o Romeu Barros ter-se-iam enforcado de desespero estomacal durante a noite, o que seria uma verdadeira perda de peso para o mungo glicófilo.
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E o grande dia chegou: pelas nove da manhã já estávamos na fila de coleccionadores e acompanhantes de acesso ao pavilhão onde se realizaria o encontro de trocas. Presentes 120 coleccionadores de 11 países: Portugal (O Carlos Barata foi outro dos que se fez a caminho), Espanha, Andorra, França, Bélgica, Itália, Alemanha, Inglaterra, Dinamarca, Hungria e República Checa. Um festim de idiomas, de abordagens ao coleccionismo de pacotes de açúcar e de cultura. Apesar de uma recolha substancial de exemplares para a minha colecção e para futuras trocas, os pacotes acabaram por ser o menos importante: o ambiente familiar que caracterizou todo o evento, a troca de impressões e o convívio foram extraordinários. Em quatro dias esquecemos todas as pequenas agruras do dia-a-dia, do trabalho e da hipocrisia política. Do almoço volante não reza grande história (ai se os Romeus pudessem escrevinhar aqui as suas lamentações...!), a não ser o seu carácter relaxado: comemos nas mesas de exposição, num silêncio estranho: não pela introspecção dos comensais, seguramente pouco deliciados com as iguarias coloridas dos tabuleiros padronizados, mas mais pelo contraste com o ruído feliz que nos assoberbou durante toda a manhã. Depois do encontro, e enquanto esperávamos pela hora do jantar, a ser servido no mesmo pavilhão, completamente transformado para o efeito, deliciámo-nos com uma cervejinha fresca numa esplanada local e entretivémo-nos com a busca de trevos de 4 folhas, como se, para além da felicidade de ali estar, ainda precisássemos de mais sorte. Secretamente, calculo, rezávamos todos por um cozidinho à portuguesa...
As hostilidades do jantar-convívio abriram com mais uma mistela francesa: uma espécie de aguardente licorosa misturada com 4/5 de vinho branco. A ementa de seis "pratos" deixou-nos expectantes, fazendo-nos esquecer a bebida fraquinha que bebericávamos por entre conversas de circunstância e fotografias com coleccionadores amigos, até que, de forma algo impositiva mas confiante, os coleccionadores húngaros (homens de bigode farto e carne nutrida), começaram a encher os nossos copos com aguardentes e licores magiares de altíssima qualidade, por entre palavras absolutamente incompreensíveis: falavam para nós em húngaro, como se fôssemos seus amigos de infância; ainda tentámos ajeitar a conversa com algumas palavras em inglês, espanhol, francês e alemão, mas sem efeito: pareceu-nos evidente que já tinham despachado algumas garrafitas daqueles néctares fabulosos às escondidas antes do jantar, pelo que o único meio de comunicação efectivo foi de natureza líquida.
De imediato, a performance dos diálogos circunstantes subiu de tom e assumiu matizes mais enlevados. A salada que abriu a contenda obteve nota alta, o que ajudou a esquecer o "experimentalismo" dos "pratos" seguintes, mais de encher o olho do que propriamente de fartança. Em todo o caso, aquelas aguardentes, senhores, aquelas aguardentes fizeram esquecer tudo! O nosso amigo Romeu Lopes, que já estava desesperado por se lhe terem acabado os cigarros e por não haver outros fumadores visíveis, perdeu completamente a cabeça: invadiu a cozinha e literalmente "assaltou" os funcionários da empresa de catering. Devem ter tido dó do homem: a cara de felicidade quando nos apresentou um cigarrito enrolado, cheio de orgulho pelo seu feito... Mas se bem o conhecem, um cigarro dá-lhe para meia hora: esperávamos pelo terceiro ou quarto prato, emborcada a quarta ou quinta ronda de néctares húngaros, e encheu-se de coragem; saiu do pavilhão e palmilhou as ruas de Rosières em busca do vil vício. Desta vez, as vítimas foram pacatos cidadãos franceses que faziam fila à porta do cinema local... Estes portugueses! Foi com estas peripécias que a noite se desenrolou: inebriada, leve, embalada pelas canções tradicionais húngaras com que um jovem magiar nos entreteve e a música dos anos setenta e oitenta (quase tudo em versões de língua francesa) que o DJ contratado seleccionou para arrastar os mais arrojados a exibir os seus dotes na pista improvisada.
De regresso à nossa mobile home, mais para o lado de lá do que para o de cá, imaginem o que fizemos? Pois claro: ainda perdemos mais uma horinha a escrutinar os pacotinhos trocados durante o evento, entre os Ai Jesus! do Romeu Lopes, que jurava nunca ter bebido aguardente tão boa nem alguma vez ter ficado naquele estado, e que costumava ter mais resistência e tal, e que precisava de apanhar um pouco de ar, e Ai Jesus! que ainda ia ter uma síncope... O Romeu Barros e eu ainda pensámos em assaltar-lhe o saco dos pacotes durante a noite, mas acabámos por decidir que as saudades da aguardente já seriam causa de grande sofrimento...



E lá arrancámos de volta a terras lusas, pelas dez da manhã de domingo. Felizes e com vontade de repetir a loucura. Não faltaram peripécias na viagem de regresso, como um desvio a Lourdes que nos fez subir a adrenalina como só as trocas de pacotinhos conseguem: não por razões espirituais (vá lá, também essas, que o santuário até é bonito e isso) mas porque acabámos, no regresso à auto-estrada, com o combustível a zero, mesmo antes da primeira estação de serviço, e o bólide a percorrer os últimos metros à força de Pais-Nossos e Avé-Marias. Isto porque, ao domingo, as estações de serviço fora das auto-estradas só nos servem o imprescindível líquido com pré-pagamento a cartão de crédito; quer dizer, com um qualquer cartão franciu (a carte bleu, pelos vistos), pois os nossos foram todos rejeitados. Foi com o recontar destas aventuras que afugentámos o soninho até chegarmos às sete e meia da manhã de segunda-feira, pouco antes de retomar as rotinas do trabalho, esse vil amigo.

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